Estrada Sinuosa

Carol Lima
5 min readApr 14, 2024

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Imagem do clipe oficial da música “Before We Drown”, da banda Depeche Mode, dirigido por Anton Corbijn

O ar fede a sangue. Recobro a consciência, do que quer que tenha ocorrido, e sinto o fluído por todo o chão, nas roupas e, principalmente, no rosto. O olho direito está inchado e o nariz está quebrado. Começo a tossir um pouco do líquido vermelho também. Começo a prestar atenção ao céu. Nublado, do jeito que tanto amo. Talvez chova, nem que seja uma garoa. “Seria uma boa pra limpar toda essa minha sujeira”, pensei. Viro meu corpo, tentando me levantar. Consigo me arrastar até um parque modesto, com poucos espaços para atividades. Sinto uma fisgada absurda no joelho esquerdo e acabo desabando. A dor geral beira o insuportável, e não faço a menor ideia de como cheguei a esse ponto. Ou talvez faça, inconscientemente.

De toda forma, vejo um homem se aproximar. Ele aparenta estar na faixa dos 30 anos, quase 40. E é estranhamente familiar. Mas é claro, é o meu melhor amigo, esse panaca. Poxa, nos conhecemos desde o início de tudo. Ele me ajuda a levantar, colocando meu braço direito ao redor de seus ombros, fazendo com que ande o suficiente para que nos sentemos num banco de madeira bem velho. Agora dá para ver melhor o parque. Tem uma quadra de basquete, um campo de futebol, e uma área com brinquedos para crianças, incluindo um balanço.

- Eu adorava o balanço. — consigo dizer, através da falta de ar.

- Eu sei. Se deixassem, você tentaria se balançar o suficiente pra voar. — ele faz uma careta — Bom, é impossível voar dessa forma, mas você entendeu.

- Quem sabe não tentei e acabei desse jeito?

Acabamos rindo ao mesmo tempo. Mais uma fisgada de dor, seguida de uma tosse. Sangue acaba escorrendo da minha boca. Meu amigo se preocupa, mas balanço minhas mãos, num gesto para que não se importe comigo. Não vai adiantar de muita coisa, mas tenho a sensação de que ele vai ao menos tentar respeitar meu desejo.

- Até hoje não consigo me ver direito como uma pessoa, um ser humano. Toda essa dor que tô sentindo me faz lembrar que, pra todos os efeitos, é o que realmente sou.

- E não uma câmera, ou um robô.

Meneio a cabeça em concordância.

- Mas é assustador, sabe? Ter consciência de que é um indivíduo. O que vem depois? Não tenho um norte definido, e todas as opções nas quais pensei por todos esses anos parecem impossíveis. E mesmo que ainda pensasse nelas, parece que não tenho mais energia vital pra tentar transformar pelo menos uma delas em realidade. Parece que é tarde demais.

- O negócio é prosseguir aos poucos, e no seu tempo. Vai que você ainda consegue realizar um desses sonhos? — ele parece ter mais esperança em mim do que eu mesma.

Sinto água nos meus pés. Olho para baixo e reparo nas pequenas ondas que se formam. A areia não é mais do parque, mas de uma praia. Estamos em cadeiras de plástico agora. Reparo em um grupo de jovens — que aparentam estar no começo da vida adulta — correndo em direção ao mar. Meu amigo dá uma leve cotovelada no meu braço.

- Isso aí, por exemplo, levou um tempo.

- Levou um puta tempo!

- Mas aconteceu. — ele diz, enquanto esboça um sorriso — E olha que você achava que nunca iria acontecer. Sair com amigos no geral, que digo.

Fico sem graça ao lembrar o quão pessimista que era, pensando que nunca sequer teria amigos naquela escola nova. Meu gesto de coçar a parte de trás da cabeça por conta do constrangimento revela a quantidade absurda de sangue que gruda nas minhas unhas. Levo a mão à água. Infelizmente, sem querer, estou manchando um pouco da memória que aquele grupo está formando.

- Eles me ajudaram demais. A gente já se divertiu tanto, já brigou pra cacete… enfim, mas isso tudo me ajudou a saber lidar com as pessoas, mesmo que aos trancos e barrancos.

- Awn, olha só quem tá com as bochechas coradas!

- Vai se foder, seu idiota! — dou um leve soco em seu braço, ao passo em que ele dá uma risada. Acabo rindo junto dele.

- Até nossa amizade ficou mais divertida por causa deles, já percebeu? Não que ela fosse ruim, o que nunca foi, mas você começou a se soltar mais. Você nem pensava em proferir um palavrão na minha frente, muito menos me dar um soquinho. E essas coisas fazem parte. Tá vendo como você não é um robô, nem uma câmera? Só precisa de um empurrão, mesmo que não saiba de quem ou do quê. E eu sempre estarei aqui, pra cada evolução sua, porque sei que isso vai acontecer.

Não tenho como conter as lágrimas. Elas se misturam ao sangue que ainda teima em se fazer presente, escorrendo em ramificações pelo meu rosto. Meu amigo parece não se importar com meu estado, pois acaba me abraçando bem forte, ao que retribuo. Era disso que precisava, e, estranhamente, ele parecia saber. Dou dois tapinhas nas costas dele, e nos separamos.

- E aí, você tá melhor? Quer outro abraço?

- Não, chega, tá tudo bem. — dou uma risada, e ele me acompanha.

- Você não respondeu a primeira pergunta.

- Sim, sim, tô bem melhor. Valeuzão por isso, cara.

Agora que reparo que ele não tem qualquer vestígio de sangue em sua vestimenta. Isso faz com que eu olhe para minhas mãos e toque a parte de trás da cabeça. Nada do líquido vermelho. Meu olho direito também não está mais inchado, e meu nariz não está mais quebrado. A bem da verdade, não há mais coisa errada alguma comigo.

- Gostaria de mais abraços como esse no futuro.

- E eu tô aqui sempre que precisar.

Acabamos nos abraçando mais uma vez, mas mais rápido porque o celular dele toca. Ele pede licença, se levanta e atende. Isso faz com que eu olhe para o lugar onde estamos. Agora é um shopping, com as pessoas passando apressadas com sacolas de presentes. Aparentemente é alguma data festiva. Meu amigo se aproxima.

- Olha, eu tenho que ir. Minha filha tá impossível! Sabe como é… adolescentes. Acham que podem fazer tudo sozinhos.

- Ih, cara… só desejo boa sorte pra vocês. Vão precisar.

- Obrigado, me sinto muito reconfortado, pode ter certeza. — o panaca dá uma risada — E é sério, qualquer coisa é só chamar.

- Pode deixar. — vejo ele hesitar de novo — Vai lá, cacete!

Até a próxima, parceiro. Muito obrigada.

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Carol Lima

Um cérebro conectado a uma rede vasta e infinita que faz uns textos sobre a cultura pop e cria uns contos