A revolução de Matrix e a experiência do cinema

Carol Lima
6 min readDec 14, 2021

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ATENÇÃO: O TEXTO A SEGUIR CONTÉM SPOILERS!

Meu pai, um apaixonado por filmes de ficção científica, queria muito ver esse tal de “Matrix” (1999), que certamente havia causado certo burburinho entre seus colegas de trabalho. Minha mãe, apaixonada pelo meu pai, acompanhou seu marido nessa empreitada, embora não fosse entusiasta do gênero (longe disso, na verdade). Eu, ainda sem paixão alguma na vida (até porque tinha apenas 3 anos de idade), fiquei em casa com meus avós para que os pombinhos fossem ao cinema do Madureira Shopping. E eles não faziam a menor ideia do que os esperava.

Os créditos finais rodaram. Meu pai saiu encantado. Minha mãe saiu um pouco confusa, mas interessada o suficiente para realizar perguntas acerca daquele admirável mundo novo. Eu só veria o filme no ano seguinte, mas em casa, em fita VHS. Fiquei boquiaberta. Mas o que era aquilo tudo?! O mundo real era uma completa desgraça, o que parecia normal era virtual, os humanos eram basicamente as pilhas das máquinas, essas, por sua vez, mandavam sentinelas para caçar aqueles fora da Matrix, era possível aprender artes marciais ao carregar dados de um disquete diretamente no indivíduo etc.

Informação demais para uma criança, decerto, mas criatividade visual o suficiente para me entreter por toda a jornada e marcar de vez minhas retinas, com cenas verdadeiramente incríveis, e meu cérebro, com todos os conceitos apresentados (inéditos, até então). Matrix criou uma sensação esquisita de que tudo o que estava vivendo poderia ser falso (tenha em mente que eu era uma criança muitíssimo impressionável), e isso me assustava. Por outro lado, me imaginava no mundo virtual lutando contra agentes e trajando um sobretudo com óculos escuros, então estava tudo bem equilibrado.

Claro que assisti “Matrix Reloaded” (2003) e “Matrix Revolutions” (2003) nos anos seguintes, ainda em casa. Já não me recordo dos meus pais conferindo esses no cinema, mas lembro de ver o segundo com eles (em fita VHS) e o terceiro e último com meu pai (em DVD). Confesso que gostei de ambos, especialmente por conta das sequências de ação mais elaboradas (a perseguição na rodovia e o embate final contra o Agente Smith, dentre tantas outras, são inesquecíveis), da expansão do mundo e pelo simples fato de continuar acompanhando Neo, Trinity e Morpheus, torcendo para que seus planos dessem certo e a humanidade fosse salva, apesar dos inúmeros pesares (que geraram um final trágico, ainda que em posse de certo otimismo).

Absorta que só nesse universo, acabei me aventurando em uma empreitada inusitada chamada “Animatrix” (2003). Lembro de ganhar seu DVD de uma de minhas tias-avós, mas fico na dúvida se era por conta do meu aniversário ou do Dia das Crianças (o que é bem impróprio, até porque a franquia é para maiores de 18 anos). Embarquei nessa sozinha, e fiquei estupefata com os mais variados estilos de todos aqueles 9 curtas presentes na antologia, com algumas histórias se situando antes ou durante alguns dos filmes. O mais surreal foi descobrir que se tratava de um projeto que realmente fazia parte do cânone da trilogia. Foi assim que conheci o conceito de narrativa transmídia, embora ainda não soubesse de tal alcunha.

Matrix me introduziu a diversas ideias em um espaço de tempo relativamente curto. Não bastasse meu amor pelos longas, agora me encontrava apaixonada por tudo o que representavam fora das telas. Foi até mesmo objeto de debate com meu pai, o destino de todas as obras que mais nos marcavam. Animatrix não havia sido o único trabalho conectado às projeções; jogos como “Enter the Matrix” (2003), “The Matrix: Path of Neo” (2005) e “The Matrix Online” (2005) expandiam o lore da franquia, bem como realizavam brincadeiras metalinguísticas com a mídia em questão. Não joguei tais títulos, infelizmente, mas fiquei por demais fascinada com as informações que carregavam consigo (maior foco em Niobe e Ghost, exploração de conceitos que seriam por demais absurdos ao grande público e até mesmo o assassinato de Morpheus foram alguns dos tópicos abordados, respectivamente).

Outro fato que ficou na minha cabeça todos esses anos e que me causava essa mesma sensação de fascínio foi a ida dos meus pais ao cinema para assistir ao primeiro filme. Antes de descobrir o que citei nos primeiros parágrafos, fiquei imaginando o que esse primeiro contato deles com uma obra tão única havia sido. E na telona, ainda por cima! Absorvidos pela escuridão da sala, fazendo com que seus mundos fossem Matrix e apenas Matrix. E é claro que tive certo ciúme dessa oportunidade deles, até porque quais eram as chances de haver uma reexibição anos depois do término da franquia?

Mas eis que, das cinzas (ou dos arquivos deletados, como preferir), surge “Matrix Resurrections” (2021). Nada em seu primeiro trailer fazia muito sentido (“Os acontecimentos da trilogia existem como filmes dentro do universo?” foi a pergunta que mais me enlouqueceu, além de “Como diabos Neo e Trinity estão vivos?”), mas foi justamente essa aura de mistério combinada com forte nostalgia que me capturou por completo, e fez com que tivesse mais um longa a antecipar nesse final de ano. E, para minha total surpresa, foi ele o responsável pela reexibição da obra original, anos depois do suposto término da franquia.

A resposta de uma antiga pergunta que gerou um dos acontecimentos mais mágicos de toda minha vida. Adentrar a sala IMAX do UCI do New York City Center gerou uma estranha sensação. Estava sozinha nessa empreitada, mas, de alguma forma, me senti acompanhada. Se meus pais estavam assistindo ao filme em 1999, eu estava com eles, mas em 2021. Minha mãe tinha 25 anos naquela época, e eu tenho 25 anos agora. Era como se, ainda que separados por períodos e cinemas diferentes, estivéssemos conectados de alguma forma. Não vou negar que senti uma forte vontade de chorar, especialmente quando os trailers (incluindo o de Resurrections) cessaram e a projeção começou.

Não sei descrever exatamente o que foi assistir Matrix na telona. Sabia de tudo o que iria acontecer, de todas as cenas, falas, lutas e músicas icônicas, mas a escuridão da sala me embalou o suficiente para acreditar que estava vivendo aquela experiência pela primeira vez e na época de seu lançamento. O mesmo aconteceu quando conferi “Ghost in the Shell” (1995) no cinema, em 2017 (a rede Cinemark proporcionou sua reexibição para promover a adaptação live-action hollywoodiana que iria estrear naquele ano). Interessante lembrar disso. A animação (que por sua vez adapta o mangá homônimo de Shirow Masamune) dirigida por Mamoru Oshii foi uma das obras que influenciou as irmãs Wachowski, diretoras da trilogia, na concepção de seu universo. Mais uma conexão.

Isso tudo para dizer que a sala de projeção é, muito provavelmente, um dos meus locais favoritos da vida, apenas pela sua capacidade de gerar momentos únicos em todo e qualquer indivíduo. Tamanhas emoções só poderiam ser vividas no cinema, esse que conseguiu quebrar as limitações do espaço-tempo para que sentisse que estava assistindo ao filme com meus pais. Uma experiência praticamente transcendental e que nunca esquecerei, pois não está guardada apenas no cérebro; está marcada no coração e na alma.

E é com esse sentimento que irei me aventurar por Matrix Resurrections no dia 23 de dezembro, um após sua estreia, na mesmíssima sala. Meu pai adoraria conferir a nova iteração da franquia, e seria um momento bem especial. Mas, dada a experiência que tive recentemente com o clássico de 1999, tenho a total certeza de que, de alguma forma, ele estará ao meu lado. Será um momento bem especial. E é com lágrimas nos olhos e coração apertado que me despeço, enquanto solto um “VIVA O CINEMA!” retumbante, acompanhado de um abraço mental em Lana Wachowski, que retornou sozinha à direção dessa nova empreitada. Nos vemos na Matrix.

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Carol Lima

Um cérebro conectado a uma rede vasta e infinita que faz uns textos sobre a cultura pop e cria uns contos